As Atlantic Talks estão de volta depois de uma curta pausa em agosto e o nosso primeiro convidado de setembro é Ricardo Araújo Pereira, o humorista que começou por ser jornalista, mas rapidamente percebeu que tem mais jeito para brincar com coisas sérias.

Depois de se licenciar em Comunicação Social na Universidade Católica, experimentou o jornalismo na TVI. Rapidamente percebeu que não era o seu tipo de jornalismo e mudou-se para o Jornal de Letras, até que descobriu que o seu caminho era o humor. Fez várias colaborações antes de se tornar célebre, juntamente com três amigos, com os Gato Fedorento.

Desde então a sua carreira é conhecida por todos. Teve vários programas na televisão – o mais recente sendo ‘Isto é Brincar Com Quem Trabalha’ na SIC -, colabora com duas rádios e escreve várias colunas de opinião, em Portugal e no Brasil.

No regresso das Atlantic Talks, Ricardo Araújo Pereira aceitou falar com o Filipe Santos Costa sobre as suas influências, o impacto do humor norte-americano em Portugal e até sobre o politicamente correto no humor nos dias que correm. Pelo meio houve discussão sobre a filosofia complexa das minudências em Seinfeld, a sensibilidade dos fãs da filatelia, e uma aula sobre as razões económicas que levam o Estica a ganhar mais que o Bucha.

Sobre o humor americano

A forma como o humor americano entrou pelas nossas casas, especialmente nas últimas décadas, é avassaladora. Pelo tipo de humor, pela capacidade de exportação de tendências pelos Estados Unidos, mas também pela forma como é feito. Prova disso, inclui até um interessado como Ricardo Araújo Pereira.

“Em Portugal, metaforicamente nós estamos virados de costas para a Europa a olhar para o mar. Podemos fazer este exercício, até a mim que o humor me interessa especialmente: eu consigo dizer 20 humoristas ingleses e americanos para cada espanhol ou francês de que me lembrar. E Espanha está aqui ao lado.” – Ricardo Araújo Pereira.

Mas o que distingue o humor americano? Para Ricardo Araújo Pereira é acima de tudo uma herança de Vaudeville, um género de teatro de variedades do final de século XIX e início de século XX, que privilegiava dois valores estéticos fundamentais: velocidade e eficácia.

“Basicamente o Vaudeville era uma espécie de programa da manhã. O que interessava no Vaudeville era vender o Calcitrin da altura, uma banda qualquer, um produto que protegia as articulações na verdade não as protegendo. Como é que se mantinha o espectador interessado nos momentos em que se vendia o Calcitrin? Era com momentos de magia, ilusionismo, duplas cómicas, que eram importantes porque dessa dinâmica entre um tipo chamado straightman e o outro que é aquele de quem a gente se ri. Essa tensão, esse contraste, é fundamental. É o Bucha e o Estica. Não são dois Buchas, dois Buchas não tem graça. O Bucha e o Estica tem.” – Ricardo Araújo Pereira.

Essa contradição é fundamental, mas também curiosa, porque no final quem ganhava mais dinheiro era o elemento sério da dupla cómica. Segundo o humorista, isto acontece por duas razões: em primeiro lugar porque é mais fácil encontrar um Bucha, o palhaço, do que o elemento sério. A segunda razão é ainda mais curiosa, e, talvez, mais importante.

“É uma forma de o indemnizar [ao straightman] pelo outro receber as gargalhadas todas. Acho isso muito interessante, muito curioso, porque significa que ouvir gargalhadas é um valor. Para um performer que está num palco, ouvir gargalhadas é um valor.” – Ricardo Araújo Pereira.

Questionado sobre as melhores séries de humor, Ricardo Araújo Pereira hesita pela variedade que poderia entrar neste leque, mas, naturalmente, Seinfeld é uma referência. Pela inovação, por todas as pessoas se conseguirem relacionar com uma série que, no fundo, é sobre coisa nenhuma.

“Muitas vezes o que o Seinfeld oferece, e o que Larry David oferece agora, é filosofia complexa sobre minudências. Às vezes tem um olhar que a gente chamaria filosófico. Muitos daqueles diálogos soam-nos como debates socráticos, porque a maiêutica está ali, só que em vez de ser sobre a justiça é sobre double dip [de batatas fritas].” – Ricardo Araújo Pereira.

Sobre o politicamente correto e as pressões em que vive o humor

Numa altura em que as tensões na sociedade em torno de questões de identidade estão muito altas, e em que as redes sociais fazem (ou acabam) uma carreira, o humorista diz que é difícil fazer uma hierarquia de sentimentos que podem ofender as pessoas, por isso fica mais complicado traçar uma linha entre o que pode ou não ser usado para fazer humor.

“Não tenho nada contra as pessoas dizerem-me ‘pera aí, isto ofende-me” e cada pessoa tem o seu. Há pessoas para quem uma referência a Maomé é ofensiva, mas para outras é o Sporting, para outras é a filatelia. E não estou a exagerar. Há mesmo pessoas que têm sentimentos muito fortes sobre a filatelia. E eu não sou ninguém – nem eu, nem ninguém acho eu – para dizer ‘eu admito que as pessoas que tenham sentimentos muito fortes sobre Maomé então fica fora de questão fazer comédia, agora filatelia tenha paciência’. Não há hipótese de alguém fazer uma hierarquia de sentimentos profundos de coisas que as possam ofender.” – Ricardo Araújo Pereira.

Mas há questões que são mais preocupantes para o humorista, que nem sequer têm uma página de Facebook, com a tendência para a literalidade e crescente sensibilidade das pessoas sobre o humor feito com dirigentes políticos.

“O que me parece inquietante é a atual tendência para a literalidade, para quando um humorista diz uma piada as pessoas a lerem literalmente e dizem isto é inadmissível. (…) É saudável as pessoas rirem-se dos seus dirigentes. Pessoas autoritárias consideram que não, e não digo apenas ditadores, pessoas autoritárias em geral. Tenho ouvido agora, dito por pessoas, hoje, que se calhar aquilo que a gente faz dessacraliza o poder. O meu primeiro impulso é dizer que dessacralizar o poder é bastante positivo. Mas há pessoas que acham que não.” – Ricardo Araújo Pereira.

Uma conversa fascinante, que pode ouvir onde habitualmente ouve os seus podcasts. Pode também seguir os links em baixo: